terça-feira, 10 de março de 2009

Papa faz ‘reforma’ parcial do Concílio Vaticano 2º


Folha de S. Paulo, domingo, 15 de fevereiro de 2009


Rafael Cariello

O último capítulo na polêmica relação do papa Bento 16 com outras religiões — a readmissão à Igreja Católica do bispo Richard Williamson, que nega a realidade histórica do Holocausto — na verdade se insere numa lógica que é própria ao mundo católico, que tem orientado o atual pontificado e que explica a maioria de suas decisões: o combate à ênfase “modernizante” do Concílio Vaticano 2º.

A interpretação que Bento 16 faz desse encontro de “revisão constitucional”, realizado entre 1962 e 1965 e que é tido por muitos como uma reforma radical da igreja, é justamente a de que ele deve ser visto menos como ruptura em relação à igreja dos dois importantes concílios anteriores — de Trento (1545-1563) e do Vaticano 1º (1869-1870) — e mais como uma continuidade da tradição.

Isso abre espaço para o cancelamento ou a revisão de aspectos mais ousados do Concílio Vaticano 2º, guiados por uma espécie de igualitarismo — entre diferentes religiões, autoridades católicas e fiéis.

“Ele já havia exprimido isso em 1985, quando foram celebrados os 20 anos do encerramento do Concílio”, diz o teólogo e historiador da Igreja Católica José Oscar Beozzo. “E passou a polemizar sobre como interpretá-lo.”

O Concílio Vaticano 2º representou uma virada dentro da igreja. Ao mesmo tempo, o papa Paulo 6º trabalhou até a última gota para que não houvesse ruptura. Então, nas afirmações mais centrais do Concílio, você tem a novidade e, logo depois, quase como um comentário, você reforça a ideia de que não há ruptura. A ênfase do Concílio é a da novidade. Mas no pontificado de Bento 16 volta a ênfase nesses “comentários”, na continuidade”, ele diz.

Missa

Uma das mudanças mais importantes do Concílio envolve diretamente o grupo de Williamson e se deu no campo litúrgico. A celebração anterior à reforma — conhecida como “missa tridentina” — comportava o uso exclusivo do latim e também o que alguns teólogos chamam de missa mais “individualista”, em que havia menor interação entre padre e fiéis.

O Concílio, além de abrir a forma da celebração a manifestações culturais e línguas locais, deu à missa um caráter mais participativo e coletivo.

Francisco Borba, coordenador do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP e integrante do movimento Comunhão e Libertação, afinado com o papa, afirma que, de fato, “para o grupo de Bento 16, o Vaticano 2º adquire força a partir da tradição, enquanto que para o outro grupo sua força está na ruptura”.

“Na interpretação que aposta no aggiornamento, a igreja tem que se adaptar aos tempos modernos. A outra afirma uma ideia de reflorescimento, em que os católicos são chamados a transformar o mundo contemporâneo — aí a questão não é a de se adaptar aos novos tempos, mas sim a de fecundá-lo a partir, novamente, do cristianismo”, ele diz.

Segundo o grupo do aggiornamento, outra mudança importante trazida pelo Concílio é a maior igualdade no diálogo entre religiões.

Bento 16 tem colecionado tropeços nesse campo, como a referência a uma declaração de um imperador bizantino do século 15 a respeito do suposto caráter violento do islã. Mas também tem feito gestos generosos pelo diálogo inter-religioso, segundo Beozzo. Há diferenças, no entanto, ele diz, entre o papa e a novidade do Concílio sobre o tema.

Para Bento 16, a Igreja Católica segue sendo a “única verdadeira” e a “única que salva”, embora o Concílio tenha procurado aceitar que mesmo religiões não cristãs também “revelam a face de Deus”.

Para historiador, católicos reagem a conservadorismo

Para o teólogo e historiador José Oscar Beozzo, “a água chegou no nariz”, e esses gestos são manifestações do “mal-estar” e do “incômodo” de parte da igreja com decisões do pontificado de Bento 16.

“Deu a impressão de que esse caso é mais uma pedrinha que se encaixa numa série de gestos conservadores. Aí, é como se dissessem: ‘Basta’. Há um pouco esse sentimento”, diz.

Para o professor de sociologia da USP Antônio Flávio Pierucci, especialista em religião, “o papa teve que recuar”. “A existência do Holocausto está reafirmada publicamente, menos pelo Williamson”, ele diz.

“É verdade que esse papa estava experimentando, que nem a mãozinha do gato. De repente, ele enfiou a mão na tomada e levou um choque”, ele diz.

“Nós assistimos a um momento em que o papa, com toda a sua autoridade, ao abrir o seu coração para os integristas, não pensou na reação. O feitiço se virou contra feiticeiro. Temos a impressão, em relação ao papa, de que algo escapa, e irrompe às vezes uma irracionalidade que vem desse seu pendor pela extrema direita.”

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