terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Mil e uma faces de um mito da fé nacional

O Estado de S. Paulo, sábado, 5 de dezembro de 2009

Mil e uma faces de um mito da fé nacional

Jotabê Medeiros

Dois milhões de romeiros chegam todo ano a Juazeiro, no Ceará, para prestar tributo a um homem que já foi descrito de mil maneiras: santo, reencarnação de Jesus Cristo, porta-voz das oligarquias, aliado de cangaceiros, ideólogo de políticas sociais, espertalhão que enriqueceu de modo ilícito, semeador de fanatismos, raposa que tirou proveito da ingenuidade popular, curandeiro das ervas.
Cícero Romão Batista (1844-1934), o Padre Cícero (ou Padim Ciço, para os populares), complexa personalidade que resume em sua história os fenômenos da fé exacerbada nos sertões brasileiros, é objeto de uma vigorosa obra literária: a biografia Padre Cícero — Poder, Fé e Guerra no Sertão (Cia. das Letras, 540 págs, R$ 49), do escritor Lira Neto. O livro, envolvente e detalhista, já entrou nas listas dos mais vendidos deste final de ano. A obra chega em momento chave do processo de reabilitação histórico-eclesial do padre pelo Vaticano, conforme afirmou ao Estado o bispo italiano Fernando Panico, da Diocese do Crato.
“Quando estive com o papa Bento 16, agora em setembro de 2009, para a visita ad limina, ele próprio — que foi quem pediu a revisão dos fatos de Juazeiro quando ainda era o Cardeal Ratzinger, prefeito da Congregação da Doutrina da Fé — prometeu solicitar que apressassem a conclusão desse caso”, disse d. Fernando Panico.
Cícero foi alvo de um tumultuado processo eclesiástico, que resultou em sua suspensão das ordens sacerdotais e, mais tarde, de um decreto de excomunhão do Santo Ofício, em Roma. À época, ele foi acusado de desobediência e de insubordinação pela alta cúpula do clero. Morreu proscrito pela Igreja, aos 90 anos. Para Lira Neto, autor da biografia, a reabilitação canônica do Padre Cícero precisa ser compreendida dentro do contexto da “guerra santa” entre católicos e neopentecostais. “A Igreja, tardiamente, percebeu que o fenômeno Padre Cícero é forte demais para ser combatido ou esquecido.”
Lira discorda que o culto popular à figura do padre milagreiro se integre à ideia da resignação do sertanejo face ao seu destino. “Eu não afirmaria isso de forma categórica”, diz. “Em Cícero, conviviam, de um lado, a fé ritualizada, a rigidez clerical do seminário, e, de outro, o universo mental típico do homem sertanejo, uma visão de mundo sincrética, lastreada no pensamento mágico e no maravilhoso. Uma vez banido, só então fez da política uma nova espécie de sacerdócio.”
A partir daí, Cícero torna-se um líder político igualmente polêmico e controverso. Chega a defender militarmente a cidade de Juazeiro, em 1913, e repelir uma força militar de mil homens. “Os que querem ver Cícero como um místico primitivo e caricato cometem uma grave falha histórica. Ele era habilidoso, ladino, sagaz. Por isso sobreviveu a todos os seus inimigos, tanto na política como no clero.”
Por três anos, hóstia virou sangue na boca da beata
O pivô da expulsão de Padre Cícero do sacerdócio foi a beata Maria de Araújo. No dia 1º de março de 1889, Cícero distribuía a comunhão na igreja quando uma das beatas, ao receber a hóstia, revirou os olhos e pareceu entrar em transe. Em sua boca a hóstia sangrava. Tentava conter o sangue, mas este lhe descia pelo braço. Em agosto, Maria de Araújo contaria ter se encontrado com o próprio Cristo. Juazeiro virou uma nova Jerusalém. Os médicos rechaçaram a hipótese de fraude. Não havia lesão da laringe ou pulmão e, mesmo que houvesse, isso teria debilitado Maria. A insistência na tese do milagre levou Cícero ao confronto. Mas Maria vertia sangue frente ao próprio comissário do bispo. “Mulher, negra e analfabeta. Como o sangue de Cristo poderia se materializar numa criatura dessas?, perguntava-se a Igreja”, assinalou a escritora e ensaísta Maria do Carmo Pagan Forti.

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